O Dízimo
O Dízimo
Túlio Cesar Costa Leite1
A menos que vocês provem para mim pela Escritura e pela razão que eu estou
enganado, eu não posso e não me retratarei. Minha consciência é cativa à
Palavra de Deus. Ir contra a minha consciência não é nem correto nem
seguro. Aqui permaneço eu. Não há nada mais que eu possa fazer. Que Deus
me ajude. Amém.
Martinho Lutero
Introdução
O movimento Reformado representou um retorno às Escrituras Sagradas. Como
conseqüência, o acúmulo de tradições acrescentadas à fé apostólica foi varrido da igreja.
Somos filhos da Reforma e temos a obrigação de julgar nossas próprias práticas à luz da
Bíblia, comparando Escritura com Escritura. A máxima igreja reformada sempre se
reformando deve ser sempre lembrada e praticada. Deveríamos hesitar em abolir
ensinos que não se respaldam na Revelação? Não há erro quando alguém obriga a si
próprio a não comer carne, ou guardar determinados dias, ou se abster de algo, ou
colocar sobre si qualquer outra obrigação sobre a qual não há mandamento bíblico (Rm
14.2-6). Porém, o erro passa a existir quando pretendemos impor a outra pessoa
exigências que a Bíblia não impôs. Pretendo demonstrar a seguir que o dízimo,
conforme tradicionalmente ensinado e praticado nas igrejas evangélicas, enquadra-se
nesta definição.
Um histórico da prática do dízimo
A igreja pós-apostólica viveu a tensão entre a prática do dízimo e a afirmação paulina
de que Cristo nos libertou da lei (Gl 5.1). Nos séculos 5 e 6, encontramos a prática do
dízimo bem estabelecida nas áreas antigas da cristandade do ocidente. No século 8 os
soberanos carolíngeos tornaram o dízimo eclesiástico parte da lei secular. Já no século
12, os monges que antes tinham sido proibidos de receber dízimos, sendo obrigados a
pagá-los, obtiveram certa medida de liberdade ao obterem permissão para receber
dízimos e, ao mesmo tempo, tendo isenção do pagamento deles. Controvérsias sobre
dízimos sempre surgiram quando pessoas procuravam evitar o pagamento, ao passo que
outras tentavam apropriar para si as rendas dos dízimos. Os dízimos medievais eram
divididos em prediais, cobrados sobre os frutos da terra; pessoais, cobrados dos salários
da mão-de-obra; e mistos, cobrados da produção dos animais. Esses dízimos eram
subdivididos, ainda, em grandes, derivados de trigo, feno e lenha, pagáveis ao reitor ou
sacerdote responsável pela paróquia; e pequenos, dentre todos os demais dízimos
prediais, mais os dízimos mistos e pessoais, pagáveis ao vigário. Na Inglaterra,
especialmente por volta dos séculos 16 e 17, a questão dos dízimos foi uma fonte de
conflito intenso, visto que a Igreja Estatal dependia dos dízimos para sua sobrevivência.
Implicações sociais, políticas e econômicas eram consideráveis nas tentativas do
arcebispo Laud de aumentar o pagamento dos dízimos, antes de 1640. Os puritanos
ingleses e outros queriam a abolição dos dízimos, substituindo-os por contribuições
voluntárias para sustentar os clérigos. Mas a questão dos dízimos despertou paixões
1 Presbítero da Igreja Reformada Presbiteriana em Maricá
ferozes e amarguras, notáveis dentre todas as questões associadas com a guerra civil
inglesa. Depois da guerra, o dízimo obrigatório sobreviveu na Inglaterra até o século
20.2
O texto clássico
Roubará o homem a Deus? Todavia, vós me roubais e dizeis: Em que te roubamos? Nos
dízimos e nas ofertas. Com maldição sois amaldiçoados, porque a mim me roubais, vós,
a nação toda. Trazei todos os dízimos à casa do Tesouro, para que haja mantimento na
minha casa; e provai-me nisto, diz o SENHOR dos exércitos, se eu não vos abrir as
janelas do céu e não derramar sobre vós bênção sem medida. Ml 3.8-10
Este é o texto clássico usado para ensinar aos membros da igreja a prática do dízimo,
isto é, a entrega à igreja de 10% do salário bruto mensal. É concordância generalizada
entre os evangélicos que o dízimo não é dado, mas sim “devolvido” a Deus. Não poucos
testemunhos confirmam que dar o dízimo acarreta bênção e o contrário traz maldição:
“Temos um colega que recebeu uma carta de uma senhora que foi membro de sua Igreja e
ele chorou amargamente ao ler aquela carta, porque aquela senhora dizia o seguinte: Pastor,
eu lhe agradeço por tudo quanto o senhor me fez durante o tempo em que fui membro da sua
Igreja. Mas eu fui obrigada a me mudar dessa localidade e fui freqüentar outra Igreja. O
senhor nunca me falou a respeito do dízimo. O outro pastor me ensinou a ser dizimista, e
Deus me abriu as janelas dos céus e me tem dado tantas e tão grandes bênçãos que eu
lamento ter perdido doze anos na sua Igreja recebendo maldição, quando Deus tinha uma
bênção sem medida para mim, se eu fosse fiel. Um pastor que recebe uma carta assim só
pode chorar.3
Testemunhos dessa natureza prendem a atenção dos ouvintes e são usados para
confirmar a veracidade do ensino a respeito do dízimo. É difícil discordar de algo que
produz resultados como este:
“Certo dia, quando recolhíamos os dízimos eu li este versículo. Estava presente um
engenheiro que, tendo sido muito rico, perdera tudo em poucas semanas, e quando eu li este
versículo ele compreendeu que isto tinha acontecido na sua vida, e, naquela hora, prometeu a
Deus que ia ser fiel na entrega dos dízimos. O que Deus fez e está fazendo na vida daquele
homem é simplesmente espantoso. Um ano depois este engenheiro era presbítero da minha
Igreja e podia dizer: Hoje eu sou muito mais rico do que era quando Deus assoprou minha
riqueza porque Ele já me devolveu em dobro o que assoprou. Este homem tem sido uma
bênção na Igreja e no seu trabalho.4
Doutrina, por mais atrativa que seja, não pode ter sua autoridade respaldada pela
experiência. O texto sagrado deve ser o único pilar sobre o qual se assenta o ensino.
Qualquer outro alicerce deve ser considerado supérfluo e indesejável. Sabemos também
que a doutrina não pode ser baseada num único texto. É necessário que haja uma
concordância com outras partes do Livro Santo. Examinemos se o dízimo, tal como é
ensinado acima, confirma-se à luz das Escrituras.
2 Extraído da “Enciclopédia Histórico-Teológica da Bíblia”. Ed. Vida Nova. Verbete “dízimo”. Negrito acrescentado. A afirmação
destacada merece consideração, pois os puritanos, nossos antepassados, representam o ápice do movimento reformado.
3 Extraído do livreto “Fidelidade. Mordomia Cristã. Dízimo -- método divino de contribuição” do Rev. Jacob Silva. Ed. do Autor.
São Paulo. 1983. p..22-23
4 Idem, p. 21
O Novo Testamento ensina a prática do dízimo?
Uma primeira constatação é que não há, no Novo Testamento, nenhum parâmetro
mínimo estipulado para a contribuição.
O apóstolo Paulo organizou uma grande coleta para os necessitados da Judéia. As duas
epístolas aos Coríntios trazem referência a esta coleta:
Quanto à coleta para os santos, fazei vós também como ordenei às igrejas da
Galácia. No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte, em casa,
conforme a sua prosperidade, e vá juntando, para que se não façam coletas
quando eu for. 1 Co 16.1-2
Nos capítulos 8 e 9 de 2 Coríntios, Paulo desenvolve seu ensino acerca das
contribuições. Estes textos se referem à alegria da contribuição, à generosidade, à
liberalidade, à presteza em ofertar:
E isto afirmo, aquele que semeia pouco, pouco também ceifará; e o que semeia
com fartura com abundância também ceifará. (9.6)
... porque, no meio de muita prova de tribulação, manifestaram abundância de
alegria, e a profunda pobreza deles superabundou em grande riqueza da sua
generosidade. (8.2)
Pedindo-nos, com muitos rogos, a graça de participarem da assistência aos
santos. (8.4)
... assim, como revelastes prontidão no querer, assim a leveis a termo, segundo
as vossas posses. (8.11)
porque bem reconheço a vossa presteza, da qual me glorio... ( 9.2)
Não vemos nenhuma referência a uma contribuição mínima que é obrigatória – o
dízimo – e a partir daí, ofertas voluntárias. Ao contrário, o ensino de Paulo, é que se a
contribuição não for voluntária, não deve ser dada:
Não vos falo na forma de mandamento, mas para provar, pela diligência de
outros, a sinceridade do vosso amor; (8.8)
Porque, se há boa vontade, será aceita conforme o que o homem tem e não
segundo o que ele não tem. (8.12)
Cada um contribua segundo tiver proposto no coração, não com tristeza ou por
necessidade; porque Deus ama a quem dá com alegria. (9.7)
Ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres (...) se não tiver
amor, nada disso me aproveitará. (1 Co 13.3).
Ofertas voluntárias são o método de contribuição do Novo Testamento:
E sabeis também vós, ó filipenses, que, no início do evangelho, quando parti da
Macedônia, nenhuma igreja se associou comigo no tocante a dar e receber,
senão unicamente vós outros; porque até para Tessalônica mandastes não
somente uma vez, mas duas, o bastante para as minhas necessidades. Não que
eu procure o donativo, mas o que realmente me interessa é o fruto que aumente
o vosso crédito. Recebi tudo e tenho abundância; estou suprido, desde que
Epafrodito me passou às mãos o que me veio de vossa parte como aroma suave,
como sacrifício aceitável e aprazível a Deus. (Fp 4.15-18)
Paulo usa a figura dos sacrifícios vetero-testamentários com relação às ofertas: as
ofertas dos filipenses foram, diante de Deus, “como aroma suave, como sacrifício
aceitável e aprazível a Deus”.
Mas aquele que está sendo instruído na palavra faça participante de todas as cousas
boas aquele que o instrui (Gl 6.6). Paulo, aqui, faz referência à obrigação de dar
sustento àqueles que se afadigam no ensino da Palavra. Ensino repetido em 2
Tessalonicenses 5.12:
Agora, vos rogamos, irmãos, que acateis com apreço os que trabalham entre
vós e os que vos presidem no Senhor e vos admoestam; e que os tenhais com
amor em máxima consideração, por causa do trabalho que realizam.
E mais detalhado em 1 Coríntios 9:
Não temos nós o direito de comer e beber? (v 4)
Ou somente eu e Barnabé não temos direito de deixar de trabalhar? (v 6 - Paulo
refere-se ao trabalho secular).
Se nós vos semeamos as cousas espirituais, será muito recolhermos de vós bens
materiais? (v 11)
Não sabeis vós que os que prestam serviços sagrados do próprio templo se
alimentam? E que serve ao altar do altar tira o seu sustento? (v 13). A
referência aqui é a Dt 18.1, que permite aos levitas comer partes dos sacrifícios
oferecidos no Templo.
De fato, existe o direito bíblico (do qual Paulo abriu mão, pelo menos com relação aos
coríntios – 1 Co 9.15 – e aos tessalonicenses – 1 Ts 2.7,9; 2 Ts 3.8-9) de os pregadores pastores .
mestres serem sustentados pelas suas congregações:
Assim ordenou também o Senhor aos que pregam o evangelho que vivam do
evangelho. (v 14)...
Porém não há referência a dízimos.
Algumas outras citações, entre muitas:
... compartilhai as necessidades dos santos. (Rm 12.13)
... façamos o bem a todos, mas principalmente aos da família da fé. (Gl 6.10)
Aquele que furtava não furte mais; antes, trabalhe, fazendo com as próprias
mãos o que é bom, para que tenha com que acudir ao necessitado. (Ef 4.28)
Exorta aos ricos do presente século ... que ... sejam ... generosos em dar e
prontos a repartir (1 Tm 6.17,18).
Note-se o ensino consistente e positivo do Novo Testamento a respeito da generosidade,
da liberalidade, da prontidão em repartir. A contrapartida negativa temos nas muitas
advertências a respeito da avareza:
O que foi semeado entre os espinhos é o que ouve a palavra, porém os cuidados
do mundo e a fascinação das riquezas sufocam a palavra, e fica infrutífera (Mt
13.22).
Tende cuidado e guardai-vos de toda e qualquer avareza; porque a vida de um
homem não consiste na abundância dos bens que ele possui. (Lc 12.15)
Sabei, pois, isto: nenhum ... avarento, que é idólatra, tem herança no reino de
Cristo e de Deus. (Ef 5.5)
Porque nada temos trazido para o mundo, nem cousa alguma podemos levar
dele. Tendo su